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Ryan McMaken | Como o Capitalismo Fez do Natal um Feriado para as Crianças

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Durante a década de 1980, milhões de crianças nos EUA debruçavam-se sobre o catálogo da Toys ‘R’ Us, sonhando acordadas com os brinquedos que esperavam receber na manhã de Natal. Afinal, em meados do século XX, o Natal – para inúmeras famílias de classe média com crianças – tornou-se mais ou menos sinónimo de um enorme número de presentes para crianças na forma de brinquedos e jogos. Os jogos da Barbie e uma miríade de action figures eram rotineiramente anunciados durante os cartoons das manhãs de sábado e nos anúncios impressos de domingo nas semanas anteriores ao Natal. Nós, crianças dos anos 80, sempre dizíamos aos nossos pais quais brinquedos “precisávamos”.

 

Não fomos a primeira geração com tais pensamentos, é claro. Como Jean Shepherd (1921-1999) relata no amado filme A Christmas Story (ambientado em 1940), o Natal era a hora de criar estratégias para receber brinquedos essenciais – como uma nova arma BB – do pai natal.

 

Além disso, o grande número de presentes para as crianças é apenas um aspeto de como o Natal se tornou, em muitas maneiras, um feriado voltado para as crianças. Do pai natal às casas de biscoito de gengibre e aos incontáveis filmes infantis de natal e livros ilustrados, o natal tornou-se uma época para os adultos investirem muito tempo, dinheiro e energia para divertir e entreter as crianças como um meio de expressar o afeto dos pais.

 

Mas, é claro, como acontece com tantos rituais e expressões culturais modernas, o amplo foco na época do Natal em diversão e presentes para crianças é uma prática bastante recente possibilitada pela riqueza e renda disponível possibilitadas pelas economias modernas.

 

– Rituais de Natal Centrados na Primeira Infância

 

Dar brinquedos para crianças não é novidade. Conforme observado por Nicholas Orme em seu livro Medieval Children, os chocalhos datam pelo menos da época de Aristóteles, e o próprio filósofo elogiou os chocalhos “como um meio de permitir que as crianças gastassem sua energia sem causar danos”. Orme descreve como, na Idade Média, as crianças tinham acesso a uma variedade de brinquedos simples, como pequenos moinhos de vento e piões, que eram chamados por uma variedade de nomes por crianças com gírias como “prill” e “whirligig”. As meninas tinham bonecas que exigiam brincadeiras mais imaginativas.

 

Os adultos ajudaram as crianças a acessar esses brinquedos e os adultos produziram esses brinquedos. Alguns adultos fabricavam brinquedos projetados para serem vendidos a outros em mercados. Alguns podem até ter sido produzidos por meio de produção em massa – empregando artesãos (e artesãs) produzindo os brinquedos em casa para venda pelos comerciantes.

 

Permanece, porém, a questão de saber quanta ênfase os adultos desses primeiros tempos davam ao entretenimento das crianças, e com que finalidade.

 

Em seu influente livro Centuries of Childhood (1960), Philippe Ariès afirma que uma mudança na forma como os adultos viam as diversões da infância no final da Idade Média e no início do período moderno. Ariès descreveu como, no século XVI, os europeus ocidentais começaram a deixar para trás os grandes festivais comunais dos séculos anteriores, nos quais as crianças tinham um papel, mas certamente não eram o foco das atenções. Isso levou a uma mudança na forma como as crianças também foram integradas aos festivais de fim de ano. As evidências fornecidas por Ariès incluem a pintura “The Feast of Saint Nicholas”, produzida pelo artista holandês Jan Steen na década de 1660. Na cena escolhida por Steen,

 

“os adultos organizaram a ocasião para entreter as crianças: é a Feast of Saint Nicholas, o predecessor do ‘pai natal’. Steen capta o momento em que os pais ajudam as crianças a encontrar os brinquedos que esconderam por toda a casa para elas. Algumas das crianças já encontraram seus brinquedos. Algumas meninas estão a segurar bonecas. Outros carregam baldes cheios de brinquedos. Há alguns sapatos por aí: será que já era costume esconder os brinquedos nos sapatos, aqueles sapatos que as crianças dos séculos XIX e XX, em alguns países, colocavam diante da lareira na véspera de Natal? Este não é mais um grande festival coletivo, mas uma tranquila celebração familiar; e, consequentemente, essa concentração na família é continuada por uma concentração da família em torno dos filhos. As festas familiares tornaram-se festas infantis.”

 

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É significativo que esta imagem tenha sido criada por um pintor holandês. Essas cenas eram mais comuns na República Holandesa, onde uma economia política burguesa e mercantil havia transformado a população holandesa em uma das mais prósperas do mundo. Ariès sugere que esta pintura reflete o “mesmo sentimento moderno para a infância e a família” que hoje se reflete em rituais de férias centrados na criança. No entanto, esse foco no prazer das brincadeiras infantis não foi bem recebido por todos. Muitos moralistas dos séculos XVII e XVIII advertiram repetidamente contra “mimar” as crianças. Um guia de etiqueta advertiu contra tornar-se o tipo de pessoa supostamente cansativa “que nunca fala de nada além de suas esposas, filhos pequenos e babás”. São João Batista de La Salle (1651-1719) condenou os pais por tratarem seus filhos “de maneira idólatra” com a atitude de “o que os filhos querem, [os pais] também querem”.

 

Como mostra Orme, os pais de todas as idades sentiam afeição por seus filhos e geralmente desejavam sua segurança e felicidade. Isso pode se manifestar de forma diferente em diferentes tempos e lugares, no entanto. Em alguns períodos, tanto os pais comuns quanto as elites consideravam facilitar as brincadeiras das crianças não apenas bom para a criança, mas também agradável para os pais que a presenciavam. Em outras épocas e lugares, os formadores da opinião pública viam tais atitudes como propensas ao excesso, resultando em “mimar a criança”.

 

Aos olhos modernos, é claro, o “problema” de mimar crianças no século XVI parecerá [estranha]. Graças a séculos de lenta acumulação de capital, ao comércio têxtil, à navegação mercante e a outras formas de progresso económico, a Inglaterra, o norte da França e os Países Baixos desfrutaram de prosperidade suficiente para dar a seus filhos “baldes cheios de brinquedos”. Pelos padrões modernos, no entanto, o padrão de vida mesmo nas partes mais ricas da Europa permaneceu muito abaixo do que viria no século XIX e depois. No sul e no leste da Europa, é claro, o padrão de vida tendia a ser ainda mais baixo.

 

Nesse período, o trabalho infantil também foi generalizado por necessidade. Muitas vezes, as famílias não conseguiam produzir uma renda confortável apenas com o trabalho da mãe e do pai. Famílias de agricultores e artesãos precisavam da ajuda das crianças, e as crianças mais velhas muitas vezes se tornavam empregadas em outras famílias. Assim, enquanto as crianças pequenas desfrutavam dos frutos do progresso económico, a infância permaneceu muito mais curta do que é hoje, graças à necessidade de as crianças produzirem alguma forma de renda no mercado.

 

– Os Vitorianos Buscam “Preservar a Inocência Infantil”

 

As tendências para o foco nas crianças se aceleram no século XIX. Em seu livro sobre literatura infantil, Kimberley Reynolds escreve que o papel dos vitorianos na “invenção da infância” foi muito exagerado. No entanto, também é verdade que, durante o período vitoriano, “as classes média e alta desenvolveram um mito da infância mais autoconsciente e sustentado do que qualquer outro anterior”.

 

Maaike Lauweart acrescenta:

 

“O século XIX assistiu a uma mudança dramática na imagem e no pensamento sobre a criança e a infância. O pintor pré-rafaelita John Everett Millais imortalizou as ideias recém-formadas sobre crianças e a cultura infantil em seu anúncio de sabonete Pears de 1886. A criança retratada no anúncio é uma espécie de querubim, um sonhador lindo, inocente e vulnerável que precisava ser cuidado, lavado, vestido, alimentado e curado. A Criança inocente estava muito situada dentro da tradição pastoral – com seu edsejo de preservar a inocência infantil. O século 19 foi notavelmente formulado como a ‘Era da Criança’ pela pedagoga sueca Ellen Key por causa de seu foco na criança e seu bem-estar, educação e saúde.”

 

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É notável que o século XIX possa ser conhecido como a ‘Era da Criança’ porque é nesse mesmo período que frequentemente ouvimos falar de como inúmeras crianças foram forçadas a trabalhar nas fábricas – isto é, nas “fábricas satânicas”. Isso, dizem-nos, foi causado pela segunda onda de industrialização, que começou no século XVIII e se tornou muito mais intensa na época vitoriana.

 

Como alguém poderia chamar esse período de uma época marcada por novas preocupações com as crianças, quando tantas supostamente trabalhavam até a morte nas fábricas?

 

A resposta está no facto de que a era do trabalho infantil estava a caminhar rapidamente para seu próprio fim no final do século XIX. Essa tendência foi provocada pelas próprias fábricas. Como Ralph Raico observa em seu trabalho sobre a revolução industrial, ao contrário do mito marxista das classes trabalhadoras sendo empobrecidas pela industrialização, a verdade é que as pessoas comuns estavam desfrutando de rendas mais altas e mais acesso a bens e serviços à medida que a segunda metade do século do século XIX avançava. Isso significava que o trabalho infantil estava a tornar-se menos necessário para garantir a subsistência e, à medida que a situação económica das famílias melhorava, as crianças trabalhavam menos, pelo menos em empregos menos perigosos. Muitos vitorianos receberam bem a tendência.

 

Isso também significou que a queda do custo de produção de bens e serviços também tornou uma ampla variedade de produtos mais acessíveis. Os mercados estavam a responder aos ideais vitorianos da infância, e isso “ajudou a garantir que os produtos infantis se expandissem junto com outros mercados”. Por sua vez, a disponibilidade de tantos livros e brinquedos reforçou as visões vitorianas da infância, e essas ideias se espalharam à medida que a “inocência infantil” se tornou viável para mais e mais pessoas.

 

Portanto, não é coincidência que o boom de produtos produzidos em massa feitos especificamente para crianças, como diz a historiadora Jennifer Sattaur, “coincidiu intimamente com a ascensão da classe média, da indústria e do capitalismo”.

 

– Chega o Natal Centrado na Criança Moderna

 

Para muitos, essa nova ênfase da classe média vitoriana nas crianças também afetou a maneira como eles viam os feriados populares. Os impulsos iniciais refletidos em ‘The Feast of Saint Nicholas’ de Steen acabaram por tornar-se mais comuns, alcançáveis e opulentos pelas economias em crescimento no século XIX. Tudo isso foi finalmente traduzido em sua forma moderna para o público americano por Clement Moore em seu poema de 1823 “A Visit from St. Nicholas”, também conhecido como “‘Twas the Night Before Christmas”. Nela, “São Nicolau” aparece com “um trenó cheio de brinquedos” para encher as meias das crianças. O poema foi extremamente popular e promoveu uma “versão caseira e centrada na criança do natal” que foi adotada por muitos americanos que estavam a desfrutar de um rápido aumento nos padrões de vida.

 

Essa tendência continuou a acelerar-se no século XX, e é essa imagem do natal que é a fonte de tanta emoção e alegria para as crianças e seus pais hoje. No entanto, a abundância e o lazer voltados para as crianças que agora associamos ao Natal foram possíveis graças à industrialização, ao capital e ao trabalho árduo de tantas gerações que vieram antes de nós.

 

 

Artigo originalmente publicado no Mises Institute.

 

Tradução e edição de André Marques.

 

Autor: Ryan McMaken é editor sénior do Mises Institute. Ele possui bacharelado em Economia e mestrado em Políticas Públicas e Relações Internacionais pela University of Colorado. Ele foi um economista de habitação para o Estado do Colorado. É o autor de Commie Cowboys: The Bourgeoisie and the Nation-State in the Western Genre.

 

Nota: As opiniões expressas neste artigo não necessariamente vão totalmente de acordo com as da Elementum Portugal e do tradutor/editor deste artigo.

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