Vivemos em tempos estranhos. As mesmas pessoas que defenderam com veemência os gastos maciços financiados através de défices orçamentários e impressão de dinheiro como a solução para a economia global agora culpam a turbulência dos mercados de títulos do Reino Unido em um aumento do défice orçamentário.
Acho surpreendente que nenhum dos chamados especialistas que imediatamente colocaram a causa da volatilidade do mercado britânico no orçamento de Liz Truss tenha dito algo sobre o colapso do iene e a necessidade de intervenção do Banco do Japão, que está em andamento por duas semanas.
Por que tantas pessoas assumiram que o miniorçamento de Truss foi a causa da volatilidade quando o euro, o iene, a coroa norueguesa e a maioria das moedas de mercados emergentes sofreram uma depreciação semelhante ou pior em relação ao dólar americano este ano? E o mercado de títulos? Este é o pior ano desde 1931 para títulos em todo o mundo, e o colapso dos preços dos títulos soberanos e privados nas economias de mercado desenvolvidas e emergentes é surpreendentemente semelhante ao dos pares de renda fixa do Reino Unido.
Os mesmos economistas que dizem que os défices não importam e que as nações soberanas podem gastar e imprimir moeda como quiserem (“políticas expansionistas”, como as chamam) agora dizem que um orçamento keynesiano do Reino Unido que aumenta os gastos, mas reduz os impostos, pode destruir a economia. No entanto, eles esquecem que o Japão teve de intervir massivamente também no iene, sem nenhum corte de impostos e mantendo sua política fiscal equivocada de gastos e endividamento.
Os fundos de pensão britânicos não estão a vender títulos soberanos por falta de confiança no orçamento deste ou de outro governo. Eles estão a vender títulos soberanos de rendimento negativo porque entraram na dívida criada por dinheiro artificialmente barato, acreditando que os bancos centrais manteriam os preços de títulos renda fixa elevados com recompras constantes [Nota do editor: assim como diversos outros bancos centrais ao redor do globo, o banco central da Inglaterra manteve taxas de juro artificialmente baixas por anos e expandiu seu balanço (aumentando a base monetária), o que incentiva a alavancagem por parte das instituições financeiras, inclusive os fundos de pensão. E, desde o início de 2022, o banco central da Inglaterra estava a reduzir seu balanço. Porém, para impedir o colapso dos fundos de pensão, já voltou a expandi-lo].
Os passivos não financiados dos fundos de pensão britânicos não são um problema causado pelo mini orçamento nem apenas um problema do Reino Unido. Foi um problema enorme em 2019-20 disfarçado por uma impressão de moeda insana. Os passivos não financiados para fundos de pensão estatais nos EUA já era de US$ 783 mil milhões em 2021 e aumentou para US$ 1.3 trilhão em 2022, de acordo com a Reason Foundation. A percentagem financiada dos passivos das pensões estatais era de apenas 85% em 2021 e caiu para menos de 75% em 2022.
O que aconteceu nos anos de taxas de juro negativas e impressão massiva de moeda? Os fundos de pensão usaram estratégias de liability-driven investing (LDI). A maioria dos mandatos de LDI usava instrumentos derivativos para proteção contra inflação e o risco de taxa de juros. E o que acontece quando a inflação entra em ação e as taxas de juro aumentam? “À medida que as taxas de juro aumentaram, o valor nocional de alguns dos derivativos mantidos em carteiras de LDI caiu. O resultado: aumento das margin calls. A velocidade com que as taxas de juro subiram significa que alguns planos de pensão tiveram de liquidar carteiras para atender às margin calls”, de acordo com o último relatório da Investment Association em setembro.
O total de ativos em estratégias LDI quase quadruplicou para £ 1.6 trilhão (US$ 1.8 trilhão) de 2011 a 2021. Quase dois terços dos regimes de pensão de benefício da Grã-Bretanha usam fundos LDI, de acordo com a Reuters. Liz Truss e Kwasi Kwarteng não são culpados por essa insanidade; a política de taxas de juro reais negativas e injeção maciça de liquidez do banco central da Inglaterra, sim. Kwarteng e Truss são os únicos culpados por acreditarem que políticas de gastos e expansão monetária defendidas por quase todos os economistas keynesianos tradicionais deveria funcionar.
Nos últimos anos, os governos britânicos e de países desenvolvidos não prestaram atenção aos desequilíbrios fiscais porque o dinheiro era [artificialmente] barato e abundante. Os défices orçamentários dispararam, os gastos não foram controlados e o problema estava escondido no balanço dos bancos centrais que, como o banco central da Inglaterra, compravam mais de 100% das emissões líquidas de dívida do governo. Depois de anos a imprimir dinheiro e a aumentar a dívida para novos máximos, a taxa de inflação alta e persistente apareceu, e agora os bancos centrais precisam aumentar as taxas de juro e reduzir o crescimento da oferta monetária justamente quando os fundos de renda fixa estão carregados de dívidas tóxicas com rendimentos nominais e reais negativos… E os aumentos das taxas de juro significam que as margin calls são mais caras e as perdas são insuportáveis.
Os fundos de pensão do Reino Unido precisam livrar-se dos ativos líquidos que possuem à medida que as margin calls aumentam. A inflação de preços chegou após anos de impressão maciça de moeda e monetização de dívidas. E fundos de investimento em todo o mundo (mas especialmente na zona euro, Reino Unido e Japão) estão vendo suas carteiras derreterem com enormes perdas nominais e reais. Quando as margin calss começam, muitos precisam vender seus ativos mais líquidos (Gilts no Reino Unido ou títulos públicos em outros lugares).
Liz Truss e Kwasi Kwarteng não são culpados pela insanidade dos últimos anos ou pelos orçamentos ultra-keynesianos de Rishi Sunak. Eles apenas são culpados por acreditar que outra dose de défice orçamentário não faria mal.
O que aconteceu no Reino Unido e no Japão provavelmente acontecerá em breve na zona euro, que acumulou mais de € 12 mil milhões em títulos de rendimento negativo nos anos de taxas de juro [negativas] e planos de estímulo imprudentes.
Liz Truss não tem culpa dos vinte anos de insanidade monetária e irresponsabilidade fiscal. Ela é a culpada por um orçamento que [diminui os impostos] sem cortar gastos.
A análise política do mini orçamento é surpreendente. Ninguém no parlamento do Reino Unido vê necessidade de cortar gastos, mas essas despesas são consolidadas e anualizadas, o que significa que qualquer mudança no ciclo económico leva a maiores desequilíbrios fiscais, pois as receitas são cíclicas e, com isso, [o governo faz mais expansão de moeda]. A suposição de que o aumento de impostos gerará aumentos anuais perenes de receitas, não importa o que aconteça com o ciclo económico, [não faz sentido].
Artigo originalmente publicado no Mises Institute.
Tradução e edição de André Marques.
Autor: Daniel Lacalle é um economista e gestor de fundos espanhol, autor dos bestsellers Freedom or Equality (2020), Escape from the Central Bank Trap (2017), e Life in the Financial Markets (2014). É professor de economia na IE Business School em Madrid.
Nota: As opiniões expressas neste artigo não necessariamente vão totalmente de acordo com as da Elementum Portugal e do tradutor/editor deste artigo.