Na semana passada, o Federal Reserve – Fed (o banco central dos EUA) anunciou mais um aumento da taxa básica de juros; porém, desta vez, em 0.5%, uma diminuição do ritmo de aumento conforme sinalizou na última reunião (onde aumentou a taxa básica de juros em 0.75% pela quarta vez).
A taxa de juros encontra-se agora em 4.4%. A última vez em que esteve neste patamar foi em 2007. A taxa anual de inflação ao consumidor dos EUA (o consumer Price Index – CPI) diminuiu de julho a novembro, atingindo 7.1%. Porém, como já mencionei em outros artigos, este é o CPI oficial, que sofreu alterações na sua metodologia na década de 1990 (veja como aqui). Segundo o Shadow Government Statistics, se calculado com a metodologia da década de 1980, o CPI também diminuiu nos últimos meses, mas está pouco acima de 15%.
Esta diminuição do CPI deve-se, em parte, ao uso do governo americano do petróleo das reservas do Strategic Petroleum Reserve e ao facto de que os agregados monetários do dólar americano pararam de aumentar. Como o Fed não está mais a comprar títulos de dívida federais e títulos hipotecários (as Mortgage Backed Securities – MBS’s), a base monetária (M0) não está a aumentar e até passou por uma pequena contração desde abril (e o balanço do Fed segue o mesmo padrão, conforme a figura 1). Já os agregados M1 (moeda em circulação e depósitos à ordem) e M2 (M1 + depósitos a prazo), que incluem o dinheiro que circula na economia e que realmente influenciam os preços ao consumidor, também pararam de aumentar nos últimos meses, passando por uma ligeira contração desde março após um aumento significativo em 2020 em 2021.
Figura 1 – Balanço do Fed e M0 (2019-2022)
M0 (Vermelho); Balanço do Fed (Verde).
Fonte: St. Louis Fed – Elaboração Própria.
Este último aumento da taxa de juros elevou o IORB (Interest Rate on Reserve Balances), que é a principal taxa que o Fed utiliza para influenciar o FFR (Federal Funds Rate, a taxa básica de juros dos EUA), de 3.9% para 4.4%. Em julho de 2021, o IORB substituiu o IOER (Interest Rate on Excess Reserves, a taxa de juros que os bancos recebiam do Fed sobre as reservas em excesso que mantinham junto ao Fed e que era a principal taxa que o Fed utilizava, desde 2008, para influenciar o FFR) e o IORR (Interest Rate on Required Reserves, a taxa de juros sobre as reservas compulsórias, ou seja, que os bancos devem manter junto ao Fed). Para saber os detalhes sobre como o Fed passou a influenciar o FFR através do IOER a partir de 2008, leia aqui, nas páginas 29 a 35 e leia estes artigos (parte 1 e parte 2).
Veja na figura seguinte como o FFR fica quase no mesmo patamar do IOER (e, agora, quase no mesmo patamar do IORB):
Figura 2 – FFR, IOER e IORB (2019-2022)
FFR (Vermelho); IOER (Verde); IORB (Laranja).
Fonte: St. Louis Fed – Elaboração Própria.
Jerome Powell (presidente do Fed) afirmou em março que, se necessário (para conter o aumento da taxa de inflação), o FOMC iria realizar aumentos de juros maiores do que 0.25% em futuras reuniões. E, até agora, foi isto o que ocorreu.
Como vimos na figura 1, até o final de julho, o balanço do Fed mal diminuiu (os ativos do Fed tiveram uma diminuição de menos de 1%). E, entre o pico atingido em 13 de abril e 14 de dezembro, o balanço do Fed teve uma diminuição de “apenas” US$ 382 mil milhões. Porém, o Fed afirmou que continuará a reduzir seus ativos (conforme anunciado em maio). E Powell afirmou que o Federal Open Market Committee – FOMC (o comité de política monetária do Fed) está “fortemente” comprometido a reduzir o CPI a para o alvo de 2% e que “ainda há um longo caminha a percorrer”, antecipando mais aumentos da taxa de juros em futuras reuniões. Além disto, foi mencionado que o FOMC estaria preparado para ajustar a política monetária se houver riscos que impeçam a realização dos objetivos do FOMC. Tradução: “Estamos a aumentar os juros para reverter o problema de aumento de preços, criado pela expansão monetária que nós mesmos fizemos. Porém, se a economia começar a sangrar, podemos sempre voltar a expandir a base monetária, como sempre fizemos nas últimas décadas. Não importa se isso é contraditório ao nosso suposto comprometimento de trazer o CPI de volta aos 2%.”
Como mencionado por Ryan McMaken, embora Powel tenha dado sinalizações de muitos mais aumentos do FFR, o FOMC deu muitas razões para esperarmos um retorno a reduções do FFR já daqui a alguns meses. O Summary of Economic Projections (SEP) mostrou que a maioria dos membros do FOMC acredita que a meta da taxa de juros atingirá um pico de 5.5% ou menos em 2023 e depois cairá para abaixo de 5% até 2024. Em outras palavras, a maioria dos membros do FOMC acredita que apenas mais dois aumentos de 0.5% serão necessários (no máximo) e o FOMC voltaria a cortar o FFR novamente em meados de 2023.
McMaken também mencionou que indicadores sugeriram que os mercados estão céticos em relação esse blefe de Powell. Os preços dos títulos de dívida aumentaram (ou seja, seus rendimentos diminuíram) após a coletiva de imprensa de Powell. Como afirmado pela Bloomberg:
“Depois de ceder ao que inicialmente foi visto como uma mensagem dura do Fed, os preços dos títulos [aumentaram], com os investidores apostando que o banco central executaria uma reviravolta no ano que vem e acabaria por cortar [o FFR] à medida que a economia [enfraquece].”
O patamar mais alto que o FFR atingiu no último ciclo de alta de juros (2015-2018) foi 2.4%. Em dezembro de 2018 (quando o FFR estava em 2.4%) houve uma queda significativa dos índices de ações americanos e em setembro de 2019 houve uma crise no mercado das operações compromissadas e o Fed passou a injetar liquidez neste mercado (na prática, fazendo Quantitative Easing, aumentando seu balanço). O FFR ultrapassou esse patamar em setembro e está agora a 4.4%. Isto significa que o Fed pode seguir a aumentar o FFR sem graves consequências para a economia real e/ou para o mercado financeiro? Pouco provável. No último ciclo de alta de juros, o Fed também realizou uma diminuição mais significativa de seu balanço, o que limitou ainda mais até que ponto o Fed poderia aumentar os juros (já que a venda dos ativos que estavam em posse do Fed faziam com que seus preços baixassem e os juros aumentassem). O Fed começou a diminuir seu balanço no final de 2017 (e voltou a expandi-lo em setembro de 2019). Quanto ao FFR, o Fed começou a aumentá-lo em dezembro de 2015 (mas voltou a diminuí-lo no primeiro semestre de 2019).
É importante mencionar que os juros em termos reais ainda estão negativos. Mesmo se considerarmos o CPI oficial de 7.1%, a taxa de juros real é de -2.7%. Além disto, outro fator importante para a diminuição do CPI é a oferta monetária. O governo federal continua a realizar enormes gastos. No ano fiscal de 2022 (de 1º de outubro de 2021 a 30 de setembro de 2022), o governo federal teve um défice orçamentário de US$ 1.35 trilhão. No ano fiscal de 2021 o défice orçamentário foi de US$ 2.78 trilhões; no ano fiscal de 2020, US$ 3.1 trilhões. O ano fiscal de 2022, portanto, foi a 7ª vez em que o governo federal teve um défice orçamentário maior do que US$ 1 trilhão. As quatro primeiras vezes foram após a crise financeira de 2008. O governo de Trump quase atingiu este patamar no ano fiscal de 2019. O défice de US$ 1.35 trilhão no ano fiscal de 2022 foi atingido devido ao défice orçamentário de US$ 430 mil milhões em setembro (o maior de todos em um mês de setembro, que costuma ter défices orçamentários menores), que ocorreu, sobretudo, devido ao perdão das dívidas estudantis. No ano fiscal de 2022, o total de gastos do governo foi de US$ 6.28 trilhões. Em outubro, o défice orçamentário foi de US$ 88 mil milhões. O governo ainda está gastar dinheiro com “estímulos” relacionados ao COVID, o congresso aprovou mais um projeto de gastos e ainda devemos ver o impacto do perdão das dívidas estudantis (já que o governo terá de se endividar mais para financiar tal medida). E não esqueçamos que um IORB mais alto significa que o Fed tem de pagar mais juros sobre as reservas bancárias, o que significa lucros menores para o Fed, o que significa que menos desses lucros serão entregues ao governo, o que significa que o governo terá um défice orçamentário maior se não aumentar impostos ou não cortar gastos.
O PIB americano teve uma contração anual de 1.6% no 1º trimestre desde ano e de 0.6% no 2º trimestre, o que configuraria uma recessão (é convencional em economia classificar dois trimestres seguidos de contração do PIB como uma recessão). Porém, no 3º trimestre, o PIB teve um aumento anual de 2.6%. Assim, os EUA não estão oficialmente em recessão neste momento. Entretanto, como afirmou o economista Daniel Lacalle, este aumento do PIB no 3º trimestre foi decorrente de uma melhora momentânea do saldo comercial:
“Se olharmos para os componentes do PIB, algumas surpresas pontuais podem reduzir o otimismo […] Toda a melhoria [do PIB] veio de um aumento [do saldo comercial, decorrente do aumento das exportações], principalmente de gás natural e petróleo, [e da diminuição das importações, o que aumentou o componente X-M (exportações- importações) do PIB]. É provável que esse enorme impulso do setor exportador seja revertido no 4º trimestre, já que o défice comercial nominal aumentou para US$ 72 mil milhões em setembro. O relatório antecipado mostra que as exportações caíram 1.5% enquanto as importações subiram 0.8%.”
A inadimplência dos empréstimos para automóveis está numa alta de 10 anos. Pequenas empresas estão com dificuldades de manter os pagamentos dos arrendamentos. E o mercado imobiliário está a contrair (apesar de o Fed mal ter diminuído suas posses de Mortgage Backed Securities – ver figura 3), conforme os juros das hipotecas aumentam (houve uma queda desde novembro, mas ainda estão num patamar superior à última máxima atingida em 2018).
Figura 3 – Ativos no Balanço do Fed (2021-2022)
Total de ativos (Roxo); Mortgage Backed Securities (Vermelho); Títulos de Dívida Pública Federal (Verde); Títulos de Dívida de Agências Federais* (Laranja).
*Títulos emitidos por empresas patrocinadas pelo governo federal (Government-Sponsored Enterprises – GSE’s), como Fannie Mae e Freddie Mac. Não é possível ver a linha no gráfico pois se trata de um valor de “apenas” US$ 2.3 mil milhões.
Fonte: St. Louis Fed – Elaboração Própria.
O número de pessoas empregadas diminuiu nos últimos meses e o crescimento real dos salários diminuiu pelo 20º mês consecutivo. A queda da quantidade de pessoas empregadas não foi acompanhada por uma queda do total de empregos numa proporção semelhante. Isto pode significar que muitas pessoas estão a trabalhar em um segundo emprego para fechar as contas.
Algumas curvas de juros estão invertidas (a curva de juros dos títulos de dívida pública federal de 10 anos e 2 anos é agora a mais invertida desde 1982). Ou seja, as diferenças entre os juros de títulos de maior maturidade e de títulos de menor maturidade estão negativas (normalmente devem ser positivas, pois títulos de maior maturidade devem pagar mais juros pois são mais arriscados do que os de menor maturidade). Historicamente, inversão de curva de juros é um indicador antecedente de recessão (que costuma ocorrer entre 6 e 24 meses após a inversão). Isto ocorre porque, se os investidores de títulos de dívida esperam que haja uma recessão, antecipam que o banco central irá diminuir a taxa básica de juros. Esta expectativa faz com que os juros de longo prazo (de títulos de maior maturidade, como de 10 e 30 anos) diminuam relação aos de menor maturidade, invertendo a curva de juros. Claro, este não é um indicador preciso e não garante que haverá recessão. Porém, é sempre um fator importante a ser observado.
Figura 4 – Curvas de Juros de Títulos de Dívida Pública Federal dos EUA
30 Anos-10Anos (Azul); 10 Anos-5 Anos (Laranja); 10 Anos-2 Anos (Verde); 10 Anos-1 Ano (Amarelo); 10 Anos-3 Meses (Roxo).
Fonte: Trading View – Elaboração Própria.
Outro indicador de recessão, segundo Ryan McMaken, é o ‘gap’ entre o crescimento do agregado monetário M2 e o do agregado TMS (true money supply). O TMS foi desenvolvido por Murray Rothbard e Joseph Salerno e fornece uma melhor medida das flutuações da oferta monetária do que o M2. O TMS difere do M2 porque inclui depósitos do Tesouro no Fed (e exclui depósitos de curto prazo e fundos de retalho). A taxa de crescimento do TMS normalmente aumenta e se torna maior do que a taxa de crescimento do M2 nos primeiros meses de uma recessão. Isso ocorreu nos primeiros meses da recessão de 2001 e de 2007-2009. Um padrão semelhante apareceu antes da recessão de 2020. E isso aconteceu novamente a partir de maio deste ano, quando a taxa de crescimento do M2 caiu abaixo da taxa de crescimento do TMS pela primeira vez desde 2020. Ou seja, quando a diferença entre o M2 e o TMS passa de um número positivo para um número negativo, é um indicador bastante confiável de que a economia entrou em recessão. Podemos ver isso neste gráfico:
Figura 5 – Taxa de Crescimento do M2 Menos Taxa de Crescimento do TMS
Fonte: Mises Institute.
E os índices americanos de ações continuam sua tendência de queda observada desde o início deste ano, apesar da subida ocorrida em outubro e em novembro:
Figura 6 – Índices Americanos de Ações
S&P 500 (Azul); Nasdaq (Laranja); RUSSEL2000 (Verde); Dow Jones (Amarelo).
Fonte: Trading View – Elaboração Própria.
Todos estes são fatores que demonstram, no mínimo, uma fraqueza da economia americana. Isto, além do enorme défice orçamentário do governo federal, dificulta ainda mais o suposto comprometimento do Fed em diminuir o CPI.
André Marques