O Federal Reserve – Fed (banco central dos EUA) está a preparar o terreno para o lançamento da sua central bank digital currency – CBDC (moeda digital de banco central). Uma CBDC funciona de uma maneira semelhante às criptomoedas. Porém, ao contrário destas, a CBDC é centralizada e sua oferta é determinada pelo banco central (ou seja, assim como as moedas fiduciárias de curso forçado atuais – como o dólar americano e o euro – a política monetária é feita pelo banco central, que pode aumentar a base monetária).
Pode parecer que o objetivo da CBDC é facilitar as transações, aprimorando a atividade económica, mas, na verdade, trata-se de mais controlo do governo sobre os indivíduos. Uma vez que uma CBDC fosse implementada, o banco central teria acesso a todas as transações feitas através da mesma, além da possibilidade de bloquear o dinheiro na conta do indivíduo. Pode parecer distópico e coisa de governos muito mais totalitários, mas há casos recentes de bloqueios de contas bancárias no Canadá e no Brasil mesmo sem ainda haver uma CBDC. Além disto uma CBDC também daria o poder ao governo de determinar o quanto que o indivíduo pode gastar, estabelecendo prazo de validade para os depósitos ou até penalizando, com juros negativos, pessoas que pouparam dinheiro. A war on cash (guerra ao dinheiro em espécie) também é um motivo pelo qual os governos querem implementar as CBDC’s. O fim do dinheiro em espécie significaria menos privacidade para os indivíduos e uma maior facilidade para os bancos centrais manterem uma política monetária de taxas de juro negativas (já que ninguém poderia levantar o dinheiro em ATM’s ou no próprio banco comercial para evitar as perdas recorrentes de juros negativos).
Com a CBDC, em vez de o seu depósito numa conta a ordem ser um passivo do seu banco, seria um passivo do banco central. E, por isto, é de se questionar o impacto que uma CBDC teria no multiplicador bancário, ou seja, na capacidade do banco comercial criar crédito. Mas esta é uma tecnicalidade do tema que não é alvo deste artigo.
Em 2020, a China lançou um programa piloto do yuan digital. Como mencionado pelo Seeking Alpha, o motivo pelo qual a China quer implementar sua CBDC é justamente o mencionado acima: “Se um yuan digital oficial fosse adotado, isto daria [ao governo] uma quantidade notável de informações sobre em que os consumidores estão a gastar.”
O governo poderia rastrear facilmente os pagamentos digitais através de uma CBDC. Como a Bloomberg mencionou em um artigo publicado quando o programa piloto do yuan digital foi lançado, a moeda digital “oferece às autoridades da China um grau de controlo nunca possível com dinheiro em espécie”. Uma CBDC pode permitir que o governo chinês monitore mais de perto as compras de aplicativos de telemóveis, que representavam, em 2020, cerca de 16% do PIB do país. A Bloomberg descreve o quanto de controlo uma CBDC poderia dar às autoridades chinesas:
“O PBOC [People’s Bank of China – o banco central da China] também indicou que poderia colocar limites no tamanho de algumas transações, ou mesmo exigir um agendamento para fazer grandes [transações]. Alguns observadores questionam se os pagamentos poderiam estar vinculados ao sistema de crédito social, no qual os cidadãos com comportamento exemplar são colocados na ‘lista branca’ para privilégios, enquanto aqueles com infrações criminais e outras são deixados de fora.”
Veja detalhes sobre o sistema de crédito social da China aqui.
Isto faz parte da War on Cash. Em 2017, o FMI (Fundo Monetário Internacional) publicou um documento a oferecer sugestões aos governos sobre como avançar em direção a uma sociedade sem dinheiro em espécie, mesmo diante de forte oposição pública. Os governos e os banqueiros centrais afirmam que a mudança para uma sociedade sem dinheiro em espécie ajudará a prevenir o crime e aumentará a conveniência para o cidadão comum. Mas a verdadeira motivação por trás da War on Cash é o controlo sobre o indivíduo. Pudemos ver o que acontece quando os governos restringem o acesso ao dinheiro em 2017, quando cerca de 90% dos ATM’s da Índia ficaram sem dinheiro em espécie para levantamento depois que o governo do país promulgou uma política de desmonetização em novembro de 2016.
E os EUA estão a preparar o terreno para estabelecer a sua CBDC. O primeiro passo foi dado em agosto, quando o Fed anunciou o FedNow, um sistema de pagamentos instantâneo a ser lançado entre maio e julho de 2023, praticamente idêntico ao PIX, do Brasil. O PIX foi implementado no Brasil pelo BACEN (o banco central do Brasil) em novembro de 2020 e é um sistema de pagamentos instantâneo, sem taxas para o usuário, muito conveniente (e, devemos reconhecer, pelos menos até agora, seguro), feito através de telemóveis. Após um ano de lançamento, o PIX já contava com 112 milhões de pessoas cadastradas, pouco mais da metade da população brasileira. Claro, há casos de fraudes e golpes através do PIX, mas a maioria são golpes de engenharia social (ver aqui, aqui e aqui) e não são falhas de segurança do sistema do PIX (ou seja, são golpes que exploram a falta de conhecimento da tecnologia por parte do público).
Veja detalhes sobre o funcionamento do PIX aqui, aqui e aqui.
Tenha em mente que o PIX ainda não é a CBDC brasileira. É apenas um sistema de pagamentos. Porém, o BACEN possui acesso a todas as transações feitas através do PIX e, portanto, o PIX pode ser considerado o embrião da CBDC brasileira (ver aqui e aqui) e já é uma invasão a privacidade dos brasileiros. E o FedNow deve seguir o mesmo caminho.
Além disso, os EUA lançaram neste mês um programa piloto de 12 semanas com diversos bancos comerciais para testar a viabilidade de uma CBDC no país.
O programa usará tokens digitais que representam depósitos bancários. As instituições envolvidas no programa farão transações simuladas para testar o sistema. Segundo a Reuters, “o [programa] piloto testará como os bancos que usam tokens digitais de dólar em um banco de dados comum podem ajudar a acelerar os pagamentos”.
Os bancos envolvidos no programa piloto incluem BNY Mellon, Citi, HSBC, Mastercard, PNC Bank, TD Bank, Truist, US Bank e Wells Fargo. O provedor global de serviços de mensagens financeiras SWIFT também está participando para “apoiar a interoperabilidade em todo o ecossistema financeiro internacional”.
Este vídeo traz detalhes sobre o este programa piloto e como a CBDC americana funcionaria.
E o FMI está a pensar em uma maneira de conectar as diversas CBDC’s em um único sistema. Ou seja, um PIX/FedNow das CBDC’s ao redor do globo. “As coisas podem mudar à medida que o dinheiro se torna tokenizado; ou seja, acessível a qualquer pessoa com a chave privada correta e transferível para qualquer pessoa com acesso à mesma rede”, afirma o FMI. “Exemplos de dinheiro tokenizado incluem as chamadas stablecoins, como USD Coin e moeda digital do banco central (CBDC).”
Stablecoins são moedas digitais lastreadas por moedas fiduciárias, como o dólar tether – USDT (que, na teoria, deveria ser lastreada pelo dólar americano a uma paridade de 1/1; porém, no ano passado foi verificado que as reservas do USDT são bastante questionáveis) . Stablecoins também podem ter outros tipos de lastro, como ouro, petróleo, índices de ações, etc. Para saber mais sobre as stablecoins, clique aqui.
A experiência com o PIX no Brasil mostra que o FedNow nos EUA, uma vez implementado, deverá ser amplamente adotado pela sua conveniência e segurança, o que é positivo do ponto de vista puramente tecnológico e para a dinâmica da economia. Porém, o BACEN possui acesso a todas as transações feitas pelos brasileiros através do PIX (o mesmo deve a acontecer com o Fed nos EUA) e esta situação só pioraria uma vez que uma CBDC fosse implementada. Através de uma CBDC, o banco central terá mais facilidade de realizar políticas monetárias expansionistas, que geram má alocação de recursos e ciclos económicos (além de possuir um controlo maior sobre as finanças dos indivíduos).
André Marques